Amar-se primeiro é tão imprescindível assim? 21/03/2025

Amar-se primeiro é tão imprescindível assim?

Por João Guardini

“Quem não ama a si mesmo, não consegue amar o outro” e suas permutações é o tipo de frase que nunca conseguiremos escapar de ouvir de vez em quando, durante nossas vidas. Essa citação é encontrada a rodo na internet, em textos, histórias e até saindo da boca de conhecidos bem intencionados que querem de alguma forma ajudar um coração partido. É o tipo de frase tão disseminada que seu significado parece auto evidente e ao mesmo tempo, quando olhamos com atenção, se desmancha em nossos lábios como o significado de uma palavra que repetimos várias vezes em voz alta.

Será que é isso mesmo? Porque estão cagando regra pra cima do amor? Quem determina o que é amor? Venho aqui explicar o que eu entendo desta frase e porque que eu não concordo com a interpretação mais difundida, mas não concordo com o contraponto também, muito pelo contrário acho que a frase faz todo o sentido! O que pode ser entendido como “amor”? Qual sua relação com a “autoestima” e o que podemos aprender com isso? Meu ponto é: busco propor uma forma prática de interpretar a frase, sendo fiel à sua interpretação mais básica, só que sem cair num reducionismo que seus críticos o acusam de ter.

Antes de sair descascando essa história, vamos escolher a faca e a tábua em que iremos cortar. Ter uma definição do que é amor é a coisa mais importante, pois a partir disso o resto se desenrola naturalmente. E então, o que é amor? Essa é uma palavra de duas sílabas, tão fácil de escorregar da boca, que ela surge em qualquer circunstância. Facilmente atribuída a coisas que, se justapostas, explicitariam sua contradição semântica. Amor é nominado de sentimento, mas considero que todo sentimento na verdade é um verbo em disfarce. Amar é uma interação ao longo do tempo. Não é apenas sentir coisas boas, é também reconhecer as características do outro, é agir conforme os interesses alheios, é respeitar limites, é o que você aprende sobre a pessoa com quem você passa tempo junto. Amar requer intencionalidade e disposição para reconhecer e cultivar a humanidade que existe no outro.

Todos nós buscamos esse reconhecimento. Momentos em que somos tocados, nos fazem rir, aprendemos algo, somos admirados, nos sentimos úteis… São tantas coisas que não tem como citar todas, mas com certeza as encontramos na nossa relação com o outro.

E aí entra nosso problema inicial. O que tem a ver com nossa autoestima?

Pronto para descascarmos esse ditado?

O sentimento de amor não está desvinculado da forma como as pessoas te tratam. A forma como as pessoas te tratam não está desvinculada da forma como você trata as pessoas. A forma como você trata as pessoas não está desvinculada das suas necessidades. Você não tem total controle da satisfação das suas necessidades, mas você controla como que você tenta saciar essas necessidades. Se você não tem fontes variadas e consistentes para saciar suas necessidades básicas, o peso que você coloca na primeira fonte que você encontrar às vezes é o suficiente para rapidamente fragilizar o vínculo.

A sua autoestima não é um traço de personalidade seu. Ela tem a ver com a forma como você foi tratado e valorizado durante toda a sua vida, em contextos distintos. Talvez a sua queixa não seja baixa autoestima. Talvez seja carência, talvez seja baixa autoconfiança, falta de propósito ou qualquer outra coisa, o resultado é o mesmo. Se você encontra em uma única pessoa um jeito para saciar suas necessidades (completamente humanas, bom lembrar) que não estão sendo atendidas, qualquer ameaça de perder essa fonte não só vai te deixar mal, como te coloca tentando controlar a todo custo a perpetuação dessa fonte, seja por sujeição, coerção ou abnegação. Novamente: amar requer cultivar a humanidade no outro. Como amar algo que você quer que seja uma extensão da sua vontade? Você ama a pessoa ou ela é um botão para saciar a suas necessidades? Você não pode oferecer o que não tem.

A ideologia do amor romântico coloca as relações íntimas sexuais como promessas de saciação das suas necessidades, uma panaceia da autoestima, da carência física, do rumo de vida, dentre tantas outras. Eu iria além e diria que nem costumamos ver as relações, vemos apenas as pessoas como fontes místicas, jorrando prazer. Somos atomizados e isolados, acostumados à ideia de que autoestima é mais um problema que devemos resolver sozinhos, apenas argumentando com nós mesmos.

Ao ver reclamarem sobre o ditado, vejo a vociferação de uma insatisfação com as contradições dos paradigmas neoliberais e românticos. Não, nem tudo depende só de você. Não, nem tudo depende só do outro. Eu ouço a insatisfação com a lógica recursiva da autoajuda, ineficaz em combater o que ela mesma tão eloquentemente “explica”. Estamos frustrados, após apoiar nossos olhos marejados nos ombros de pessoas que confiamos, desabafarmos nossas dores, para nos retribuírem com o equivalente a um “você sofreu porque não tem autoestima… já pensou em ter mais autoestima?”; “não era a pessoa certa… logo você vai encontrar a sua metade da laranja”.

Não obstante, quando ouço as pessoas falarem “ame a si mesmo”, eu gosto de encarar como “busque entender porque você quer tanto amar alguém, busque encontrar em mais de uma relação na sua vida aquilo que você acha que só um romance vai te prover de forma significativa”. Amar a si mesmo é uma interação ao longo do tempo. Amar a si mesmo requer intencionalidade e disposição para reconhecer e cultivar a humanidade que existe em você mesmo.

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