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A Lanterna das Memórias Perdidas e a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT)
por Karl Gustav Ellwein
Hatsue, uma senhora de 92 anos que passou a vida se dedicando ao ensino infantil e que enfrentou muitos obstáculos, refletia sobre o conteúdo desta frase enquanto tomava seu chá em um estúdio fotográfico ainda desconhecido para ela. O detalhe curioso? Ela já havia falecido. É uma das personagens de um livro chamado “A Lanterna das Memórias Perdidas”, de Sanaka Hiiragi, escritora japonesa, uma obra que traz grandes reflexões sobre temáticas trabalhadas na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT).
A narrativa gira em torno de 4 personagens, sendo um deles o fotógrafo Hirasaka, que recebe as pessoas que acabaram de morrer para relembrarem suas vidas através de fotografias, e assim servir de orientador de caminho para aquilo que viria depois. Além de Hatsue e Hirasaka, há uma parte do livro dedicada a falar sobre Wanigushi, um criminoso de 47 anos, que mesmo em meio a uma vida repleta de crimes e violência, descobriu o real sentido da vida ao chegar no estúdio de Hirasaka; e também a pequena Mitsuru, uma criança vítima de abusos sucessivos de sua mãe e padrasto, que teve a infância marcada por muito sofrimento.
No livro, Hirasaka convida as pessoas a relembrar seus momentos mais importantes. Elas recebem fotografias representando cada dia vivido, e precisam escolher uma para cada ano de vida. Cada uma destas fotos selecionadas são inseridas em um caleidoscópio, e assistidas por elas junto a Hirasaka antes de partirem definitivamente a algo ainda desconhecido. É também dada a elas a oportunidade de voltar no tempo e refazer alguma foto considerada muito importante, e assim reviver aquela experiência.
No decorrer da leitura nos deparamos com muitos respondentes sendo eliciados nos personagens ao revisitar suas vidas, e também em nós leitores quando refletimos sobre a nossa. É uma leitura que rende uma discussão bem rica, mas por aqui ficamos apenas nos temas da aceitação da dor e dos valores que servem de orientação para nossa vida.
Aceitação da Dor e Valores na ACT
Hatsue, ao escolher as imagens que representam seus anos, e também ao voltar ao passado para refazer uma fotografia que estava borrada, não evita os momentos que relembram dor ou tristeza. Ela abraça os maus momentos que teve junto aos seus alunos e seus pais (e suas condições precárias) como parte integrante de quem ela é, alinhando-se ao princípio da ACT de que a dor é inevitável, mas o sofrimento prolongado muitas vezes resulta da resistência a essa dor. A sua jornada também reflete a importância de vivermos alinhados aos próprios valores: apesar das adversidades, ela dedicou sua vida ao ensino infantil, um valor que guiou suas ações e decisões. Na ACT, valores funcionam como direções, não como metas a serem concluídas. Hatsue encontrou na educação das crianças a sua bússola.
Wanigushi representa alguém que, ao longo da vida, age de maneira impulsiva, violenta, guiada por reforçadores imediatos (como dinheiro ou poder), sem considerar as consequências de longo prazo de suas ações, que inclusive resultaram em sua morte. Em determinado ponto do livro ele diz: “na vida, não existem nem “talvez” nem “se”. O presente é feito dos resultados das escolhas que fiz nas encruzilhadas”. Esse reconhecimento é um passo em direção à aceitação. Ele percebe que seu comportamento foi modelado por contingências específicas e que não pode alterar o passado. E, em seus últimos anos de vida, descobriu convivendo com o Rato (outro personagem) que o que era mais valoroso para ele eram as conexões humanas e os relacionamentos.
Enfim, a pequena Mitsuru e a resiliência: particularmente, para mim, sua história ressoou como a mais forte. A trajetória de Mitsuru envolveu aceitar a dor passada do abuso infantil, com uma grande ajuda de Hirasaka, e de certa forma encontrou alguns momentos de leveza ou conexão que, embora raros, foram significativos em sua vida. Em determinado trecho do livro é possível observar sua alegria em ter a fotografia como hobby, em sentar em uma rocha para observar uma bela paisagem, entre outras coisas, com a ajuda de outras pessoas (cabe dizer mais uma vez que o apoio de Hirasaka foi fundamental). Isso reforça a ideia de que, mesmo após passar por circunstâncias difíceis, é possível encontrar significado no presente. Não confundamos a aceitação da dor como conformismo, passividade ou submissão, acredito que até aqui isso esteja evidente.
A Efemeridade da Vida e a Urgência de Viver o Presente
Diante de uma leitura com esse conteúdo, refletimos muito sobre a efemeridade das nossas vidas. Por mais preciosas que nossas lembranças sejam, o livro traz uma grande frase inserida em um diálogo na página 28 da sua 3. edição pela editora Bertrand Brasil: “Se um retrato, ao contrário daquele que é guardado em algum lugar e esquecido, é o preferido de uma pessoa, que o manuseia de maneira contínua ou o enquadra para enfeitar um canto da sala, a imagem tende a descolorir e a danificar. E quanto mais a pessoa o examina, mais ele estraga. O mesmo acontece com as lembranças. Quando nos são preciosas, elas nos vêm à memória por qualquer motivo, mas, com o passar do tempo, não conseguimos mais nos lembrar de todos os pequenos detalhes.” Essa passagem nos convida a aceitar a impermanência e a valorizar o agora. A ACT nos auxilia a compreender que estamos constantemente nos voltando ao passado ou tentando prever um futuro incerto, mas o que realmente temos é o presente. Se ficarmos presos demais nas memórias ou nas preocupações futuras, podemos deixar de viver de acordo com o que realmente importa para nós.
Por fim, a pergunta que fica é: e você? Se você olhasse hoje um álbum com as fotos de todos os dias da sua vida, qual foto representaria aquilo que realmente importa, agora, para você?
Referência:
HIIRAGI, Sanaka. A lanterna das memórias perdidas. 3. ed. Tradução de Leiko Gotoda. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2024.